Mendonça, M., Woodcock, J., and Grohmann, R. (2022) 'Composição de Classe e Migração para Entender o Trabalho por Plataformas: o caso dos entregadores brasileiros no Reino Unido', Caderno CRH. v. 35, p. 1-19
Este artigo analisa como a migração afeta a composição de classe dos entregadores brasileiros no Reino Unido. Embora pesquisas agora indiquem que a migração desempenha papel importante no trabalho por plataformas no Norte Global, pouco se sabe sobre as maneiras específicas como isso ocorre na prática. Demonstramos como a migração é um aspecto constitutivo desse setor no Norte Global e como a condição de migrante gera experiências e comunidades comuns, atravessando todos os aspectos dessa indústria, desde a organização do trabalho e as experiências de vida até as formas coletivas de resistência e organização. Para isso, propomos o enquadramento da teoria marxista da composição de classe e a migração, para compreender a formação desse novo setor da classe trabalhadora e seus processos de luta e resistência. Este estudo se baseou em duas pesquisas etnográficas de longo prazo, com a organização coletiva dos entregadores em Londres, e em 13 entrevistas em profundidade.
Palavras-chave: Entregadores. Trabalhadores por Plataformas. Inglaterra. Composição de Classe. Migração.
UNDERSTANDING PLATFORM WORK: class composition and migration in the case of brazilian delivery workers in the United Kingdom
This paper examines how migration affects the class composition of Brazilian delivery workers in the United Kingdom. Although some studies indicate that migration plays an important role in platform work in the Global North, little is known about the specific ways in which it occurs. The study seeks to show how migration is a constitutive aspect of this sector in the Global North and how the migrant status generates shared experiences and communities, crisscrossing all aspects of said industry, from work organization to life experiences, and even collective forms of resistance and organization. To do so, it draws on the Marxist theory of class composition and on migration to understand the formation of this new working class sector and its processes of struggle and resistance. Data were collected from two long-term ethnographic studies with the collective organization of delivery workers in London, and 13 in-depth interviews.
LA COMPOSITION DES CLASSES ET LA MIGRATION POUR COMPRENDRE LE TRAVAIL DE PLATFORME: le cas des livreurs brésiliens au Royaume-Uni
Cet article examine comment la migration affecte la composition de classe des livreurs brésiliens au Royaume-Uni. Bien que certaines études indiquent que la migration joue un rôle important dans le travail de plateforme dans le Nord global, on sait peut de choses sur les manières spécifiques dont cela se produit. Cette étude cherche à montrer comment la migration est un aspect constitutif de ce secteurs dan le Nord global et comment le statut de migrant génère des expériences et des communautés partagées, traversant tous les aspects de ladite industrie, de l’organisation du travail aux expériences de vie, et même aux formes collectives de résistance et d’organisation. Pour ce faire, elle s’appuie sur la théorie marxiste de la composition des classes et sur la migration pour comprendre la formation de ce nouveau secteur de la classe ouvrière et ses processus de lutte et de résistance. Les données ont été collectées à partir de deux études ethnographiques à long terme sur l’organisation collective des livreurs à Londres, et de 13 entretiens approfondis.
INTRODUÇÃO
As primeiras pesquisas sobre economia de plataformas entendiam os trabalhadores como indivíduos isolados e espalhados pelas plataformas digitais. Essa fragmentação técnica dos trabalhadores pelos espaços urbanos foi apontada por alguns como um bloqueio inerente à ação coletiva (Osborne; Butler, 2016). Essa perspectiva via os trabalhadores da mesma forma que o capital nas plataformas: como unidades a serem ordenadas e disciplinadas. No entanto, a partir de 2016, houve um crescimento da resistência dos trabalhadores e das formas de organização que estão cada vez mais destacando as maneiras pelas quais os trabalhadores por plataformas estão conectados (Cant, 2019; Woodcock, 2021).
No Reino Unido, muitas dessas lutas foram construídas em redes preexistentes, muitas das quais envolvendo migração, e são mediadas por plataformas de mídias sociais como WhatsApp e Facebook. O que nossa pesquisa mostra é que a migração e as nacionalidades são uma base importante para essas coletividades e, portanto, também para a ação coletiva no trabalho por plataformas. Argumentamos que migração é um aspecto constituinte do setor de entrega por plataforma no Reino Unido e, provavelmente, em todo o Norte Global. Ao mesmo tempo em que o capitalismo produz o deslocamento massivo de trabalhadores em busca de melhores condições de trabalho e vida, essas empresas de plataforma criaram um modelo de negócio dependente dessa força de trabalho mais disposta a aceitar condições de trabalho e contratos precários. A condição de migrante gera experiências e comunidades comuns que atravessam todos os aspectos dessa indústria, desde a organização do trabalho, as experiências de vida e as formas coletivas de resistência e organização coletiva. Embora não haja dados quantitativos desse cunho devido à falta de informações fornecidas por essas empresas, os brasileiros são, de longe, o maior grupo de migrantes trabalhando por plataformas de entrega no Reino Unido. Em muitas áreas do país, as plataformas só têm suportes nos idiomas inglês e português.
Embora as pesquisas agora indiquem que a migração desempenha papel importante no trabalho por plataformas no Norte Global (Dunn, 2020; van Doorn; Ferrari; Graham, 2020), pouco se sabe sobre as maneiras específicas pelas quais isso ocorre na prática. Este artigo propõe o uso da perspectiva de composição de classe como uma maneira de compreender a migração em termos da composição social dos trabalhadores, em relação à composição técnica (incluindo processo de trabalho, gestão e tecnologia) e composição política (formas de resistência e luta) no trabalho por plataformas (Notes from Below, 2018).
Para explorar essas dinâmicas, este artigo se concentrará nas experiências de entregadores brasileiros de plataformas de delivery no Reino Unido, como exemplo de trabalho migrante em plataformas digitais. Após revisão da literatura sobre o tema, o artigo apresenta a teoria da composição de classe como um arcabouço teórico profícuo para estudar os trabalhadores por plataformas. Essa perspectiva foi importante para orientar a pesquisa empírica realizada com entregadores brasileiros no Reino Unido. As etnografias e entrevistas em profundidade realizadas exploram as maneiras pelas quais a migração molda a experiência de trabalho por plataformas, chamando atenção para os processos que ocorrem por trás do aplicativo em plataformas como Deliveroo e UberEats. A fim de discutir como os efeitos da migração na composição de classe dos entregadores brasileiros no Reino Unido, a análise apresenta as experiências no processo de trabalho e a composição técnica, a comunidade heterogênea de brasileiros como parte da sua composição social e a organização e composição política desses trabalhadores. Assim, este artigo ilustra as maneiras pelas quais a migração de trabalhadores impacta a economia de plataformas em diferentes níveis.
MIGRAÇÃO E TRABALHO POR PLATAFORMAS
Há, é claro, uma longa conexão entre migração e trabalho no sistema capitalista. A migração para cidades em crescimento desempenhou papel fundamental na revolução industrial no Reino Unido (Engels, [1844] 2009). Muitas vezes, seja por meio de fluxos migratórios menores ou maiores, os trabalhadores se mudaram para trabalhar, seja de forma voluntária ou forçada. Embora o espaço sempre tenha sido parte importante do trabalho, nem sempre foi colocado em primeiro plano na análise.
As geografias de migração são uma dinâmica importante a ser considerada no trabalho, seja com base em plataformas ou não. Como David Harvey (1990, p. 19) observou: “a força de trabalho tem que ir para casa todas as noites”. Há muita literatura cobrindo as vulnerabilidades dos trabalhadores migrantes, particularmente aqueles com status de migração irregular (Ryan, 2005). Por um lado, isso pode ser o resultado de trabalhadores migrantes serem, muitas vezes, “forçados a aceitar os contratos mais precários, em empregos incompatíveis com seus níveis de habilidade” (McDowell, Batnitzky; Dyer, 2009, p. 4, tradução nossa). Mais amplamente, essa experiência de trabalho é atravessada pela xenofobia e racismo, afetando os migrantes dentro e fora do local de trabalho – veja a recente crise irlandesa entre entregadores brasileiros e gangues xenofóbicas.1 (https://www.irishtimes.com/news/ireland/irish-news/deliveroo-cyclists-we-want-to-deliver-food-without-thinking-we-might-be-robbed-or-run-over-1.4347707) Na maior parte das vezes, há uma equivalência entre precariedade e marginalização nesses processos (Pollert; Charlwood, 2009). De fato, muitos trabalhos chamados de “não convencionais” não são cobertos por nenhum dos “três regimes regulatórios – negociação coletiva, direitos de proteção ao emprego e sistema nacional de seguro” (Fredman, 2003, p. 308).
Embora haja, sem dúvida, muitas vulnerabilidades para os trabalhadores migrantes, também há exemplos importantes de como os trabalhadores migrantes se organizaram coletivamente no trabalho com sucesso. Os trabalhadores migrantes latino-americanos formaram um novo sindicato no Reino Unido, o Independent Workers Union of Great Britain – IWGB (Woodcock, 2014a), que cresceu para abranger outros grupos de trabalhadores migrantes e precários (Però, 2019; Woodcock, 2016). Mais amplamente, os trabalhadores migrantes foram excluídos e incluídos no movimento sindical em diferentes pontos (Penninx; Roosblad, 2000; Waterman, 1998). Da mesma forma, em um contexto brasileiro, Theodoro e Cogo (2021, p. 68, tradução nossa) argumentaram que “é essencial considerar a diversidade contida nos movimentos migratórios contemporâneos”, particularmente para além do que podemos considerar ser o típico sujeito migrante.
Sem desconsiderar as relações capitalistas que causam o fenômeno da migração, parte da discussão pode apresentar os migrantes como sujeitos sem agência. Vale, portanto, pensar a relação também ao contrário: “os trabalhadores fazem suas próprias geografias, embora não nas condições de sua própria escolha” (Herod, 2003, p. 112). Isso pode ser encontrado com a conceitualização de “autonomia da migração”, na qual o “foco mudou dos aparatos de controle para as múltiplas e diversas maneiras pelas quais a migração responde, opera independentemente e, por sua vez, molda esses aparatos e suas instituições e práticas correspondentes” (Casas-Cortes; Cobarriubias; Pickels, 2015, p. 2, tradução nossa). Moulier- -Boutang (1998) defende a compreensão de como a mobilidade dos trabalhadores moldou o capitalismo, não apenas o contrário. Da mesma forma, Papadopoulos, Stephenson e Tsianos (2008, p. 202) destacam como a migração tem atuado como “uma força criativa dentro das estruturas sociais, culturais e econômicas” de organização que vêm com as pessoas ligadas a essa força de trabalho. Como demonstramos com o caso dos entregadores brasileiros no Reino Unido, a migração e a ação coletiva moldam as atividades espaciais e de trabalho na economia de delivery, ao mesmo tempo em que são moldadas por ela.
No contexto do trabalho “enxuto” por plataformas (Srnicek, 2017), há um crescente corpo de literatura que examina a resistência e a organização da perspectiva dos trabalhadores (Briziarelli, 2019; Cant, 2019; Cant; Mogno, 2020; Englert, Cant; Woodcock, 2020, Fear, 2018; Gent, 2019; Leonardi et al., 2019; Tassinari; Maccarrone, 2020; Woodcock, 2017;). No entanto tem havido comparativamente poucos trabalhos que examinam o papel da migração, além da constatação da importância desse fenômeno na forma de organização do trabalho (Woodcock, 2021) ou o papel dos trabalhadores migrantes em algumas das lutas mais visíveis. A noção de “migração por plataformas” de Collins (2020) fornece uma rota conceitual para entender o papel da migração nesse contexto. O autor argumenta que a migração por plataformas:
opera por meio de componentes e aplicativos múltiplos e mutantes que inspiram, atuam, constrangem, limitam e redirecionam os fluxos de pessoas entre territórios. Estes podem envolver plataformas, como aplicativos móveis, particularmente em relação ao trabalho migrante […] chamar a atenção para a migração por plataformas suspende a ênfase esmagadora no migrante e no estado nos estudos de migração, proporcionando espaço para focar mais cuidadosamente nas dimensões incorporadas da mobilidade, as lógicas e operação de controle e as possibilidades de ruptura e reconfiguração que permeiam os sistemas atuais (Collins, 2020, p. 867, tradução nossa).
A relevância cada vez maior das tecnologias de comunicação no trabalho por plataformas (Maffie, 2020), particularmente por meio do uso de celulares, também demonstrou desempenhar papel significativo nos processos de migração (Boas, 2017; Dekker; Engbersen; Faber, 2016; Gough; Gough, 2019). Dado o papel que os celulares desempenham para o uso dos trabalhadores migrantes nas plataformas de transporte, não é de surpreender que essas tecnologias sejam usadas como parte da jornada migratória de forma mais ampla. Essas redes fazem parte do que Meeus, Van Heur e Arnaut. (2019) denominaram “infraestruturas de chegada”, que moldam a forma como os migrantes acessam e se envolvem com o trabalho, bem como com a habitação (Robertson, 2017) e outros serviços. A infraestrutura, considerada aqui de forma mais ampla, molda como os migrantes vivenciam e interagem com o trabalho (Lin et al., 2017). Isso se baseia em argumentos mais abrangentes sobre a inserção espacial de trabalhadores, incluindo “trabalhadores migrantes” que dependem, não importa quão efêmera, “das relações espaciais que os ligam aos mercados de trabalho locais de onde quer que estejam trabalhando em determinado momento, enquanto esses mercados de trabalho, por sua vez, estão ligados a relações geográficas mais amplas que interligam a economia global” (Herod, 2003, p. 113, tradução nossa). Isso também pode ser entendido em termos da combinação da “composição técnica” das relações de trabalho com a “composição social” dos migrantes como trabalhadores (Notes from Below, 2018), entendendo as formas de reprodução social fora do trabalho.
COMPOSIÇÃO DE CLASSE
Antes de passarmos para as discussões empíricas da nossa pesquisa, gostaríamos de apresentar brevemente a teoria marxista da composição de classe em que nos apoiamos e propomos para estudar os entregadores de plataforma. Como conceito, classe pode ser abordada a partir de uma série de perspectivas diferentes. Ao contrário das abordagens que se centram na renda, ocupação ou cultura, a abordagem marxista parte da compreensão de classe como uma relação antagônica a partir de suas condições materiais. Não pode haver classe dominante sem uma classe subordinada a explorar e vice-versa. Contudo os debates marxistas sobre classe também foram pegos nos seus próprios argumentos, incluindo questões de cooptação (ou divisões internas dentro da classe trabalhadora) e alianças (ou ligações externas a outras classes) (Toscano; Woodcock, 2015). Muitas vezes, estas têm sido tentativas de dar sentido às relações das classes trabalhadoras na Europa com o sindicalismo e a social-democracia. Mesmo assim, o conceito de classe nunca teve uma relação simples ou direta com as análises sobre as divisões de gênero (Federici, 2012; Fortunati, 1995; James, 2012) e raça (Ignatiev, 2008; James, 1997; Roediger, 1991) que buscaram transformar nossa compreensão sobre exploração tanto dentro como fora do local de trabalho.
Por conseguinte, é importante começar com uma compreensão não estática de classe, mas sim analisar a classe como relação de exploração. Esse esforço não é simplesmente para produzir novos rótulos ou categorias, mas para interrogar a dinâmica contemporânea do capitalismo. Podemos ver a vitalidade das análises relacionais de Marx sobre classes tanto em O capital (Marx, [1867] 1976) como também nas relações entre classes e fracções de classe no 18 de Brumário de Luis Bonaparte (Marx, 1852). Para a análise de hoje, particularmente dentro de novos setores como o de entrega por plataformas, a questão da formação de classes se torna especialmente importante. Partindo de conceitos d’O Capital – principalmente das partes III e VI –, encontramos ferramentas importantes para explorar o processo laboral e a organização do trabalho pelo capital, mas estas requerem uma rearticulação com as novas condições do capitalismo. Como argumentou Thompson (2003, p. 213): “a criação da classe trabalhadora é um fato político e cultural, tanto como econômico e histórico. Não foi uma geração espontânea do sistema fabril […] a classe operária se fez tanto quanto foi feita”.
A fim de analisar como os trabalhadores de plataformas de entrega estão se fazendo como classe e se transformando numa classe, nos apoiamos numa tradição do marxismo que tem se centrado nessas questões. Outras pesquisas também têm apontado para a necessidade de olhar para processos da reprodução social dessa força de trabalho na constituição desse grupo enquanto parte da classe trabalhadora (Braga; Silva, 2022). O conceito de composição de classe foi desenvolvido por marxistas envolvidos no método da enquete operária – projeto que busca combinar a pesquisa com a organização coletiva. Isso se inicia no chamado de Marx (1880) por uma Enquete Operária. O objetivo do survey feito por Marx era compreender a experiência do trabalho a partir da perspectiva dos trabalhadores, bem como construir ligações com eles.
A enquete operária foi retomada por vários grupos diferentes, incluindo a tendência de Johnson-Forest, Socialismo ou Barbárie, e, mais tarde, os Operaístas Italianos (Woodcock, 2014b). É com estes últimos grupos de italianos dos anos 1960 que a composição de classe se desenvolve teoricamente pela primeira vez. Mario Tronti (1979, p. 89 apud Negri; Hardt, 2009, p. 291) argumentou que, em vez de começar a análise a partir do capital, havia uma necessidade de inverter o problema e começar desde o início – e o início é a luta da classe trabalhadora. Isso, como argumentado por Turchetto (2008, p. 287), envolveu uma “revolução copernicana” contra a ortodoxia marxista existente na época. Roggero e Lassere (2020, p. 3, tradução nossa) rearticularam isso, argumentando que
essa inversão deve ser entendida à luz da parcialidade irredutível desse ponto de vista: primeiro a classe, depois o capital. O capital não é o sujeito da História, não é o que faz e desfaz, o que determina o desenvolvimento e as condições para a sua própria superação. Pelo contrário, a História não é teleológica, e no seu centro está a luta de classes, o seu poder de recusa e a sua autonomia.
Se quisermos nos centrar na classe, isso implica compreender as condições e as relações envolvidas com a classe em diferentes pontos.
Uma proposta para compreender a composição de classe foi apresentada pela revista marxista Notes from Below (2018). Nela, a composição de classe é
uma relação material com três partes: a primeira é a organização da força de trabalho numa classe trabalhadora (composição técnica); a segunda é a organização da classe trabalhadora numa sociedade de classes (composição social); a terceira é a auto- -organização da classe trabalhadora numa força de luta de classes (composição política).
Por exemplo, a introdução da fábrica levou a uma série de mudanças na organização do processo laboral das pessoas que passaram a trabalhar nelas. A organização da produção fabril atraiu grande número de pessoas que tiveram que trabalhar em conjunto para operar a fábrica. Gestores e supervisores foram utilizados para assegurar uma exploração eficaz do trabalho fabril. Muitos trabalhadores se mudaram para as grandes cidades, vivendo perto da fábrica. Ambas as dinâmicas envolveram mudanças na composição técnica e social dos trabalhadores. Esses grupos sociais podem não ter nascido trabalhadores de fábrica, mas se transformaram em um dentro dessas condições. Por sua vez, essas dinâmicas também moldaram as formas como os trabalhadores se opuseram ao capital. A necessidade de cooperação dentro da fábrica levou a greves e táticas de paralisação da produção. As comunidades da classe trabalhadora em torno das fábricas se tornaram centros de resistência. E as lutas dos trabalhadores remodelaram as fábricas ao forçar o capital a responder com novas técnicas de gestão e, muitas vezes, com novas tecnologias.
Uma análise da composição de classe não procura relação determinística entre a composição técnica, social e política da classe. Em vez disso, trata-se de compreender como se desenvolve a subjetividade dos trabalhadores. Como explicam Roggero e Lessere (2020, p. 6, tradução nossa), “a subjetividade – a base e a aposta da composição de classe – não é a consciência. A subjetividade não é revelada, ela é produzida. O capital a produz, assim como também as lutas o fazem”. Isso significa começar com uma análise do trabalho, mas também ampliá-lo. Como colocado por Matheron (1999), precisamos “analisar o processo laboral e suas modificações em detalhe, a fim de compreender o que significa ‘luta de classes’: nunca houve ‘evidência’ mais marxista”.
O enfoque na composição social não consiste em negar a importância das condições de trabalho. Pelo contrário, trata-se de compreender criticamente a forma como os trabalhadores são socializados, incluindo onde vivem e em que tipo de habitação, a divisão do trabalho em função do gênero e raça, padrões de migração, processos de marginalização, infraestruturas comunitárias etc. Esses elementos têm impacto importante na forma como os trabalhadores se constituem como classe e nas suas lutas. Em alguns casos, esses aspectos podem intensificar as lutas dos trabalhadores, enquanto noutros podem fornecer barreiras e obstáculos. Portanto,
nas três partes, a composição de classes é simultaneamente produto e produtor de luta sobre as relações sociais do modo de produção capitalista. A transição entre a composição técnica/social para a política ocorre como um salto que define o ponto de vista político da classe trabalhadora (Notes from Below, 2018, tradução nossa).
No contexto deste artigo, a composição de classes fornece um quadro para desdobrar a complexa relação entre o processo de trabalho nas plataformas de delivery, a dinâmica da migração constituinte dessa indústria no Norte Global e as formas de luta dos trabalhadores que dela emergem.
CONTEXTO E METODOLOGIA
Os entregadores têm composição técnica semelhante em seu trabalho ao redor do mundo (Fairwork, 2020; Grohmann, 2021), mas têm composições sociais e políticas diferentes. Em particular, o Brasil tem o legado de uma economia informal, com o chamado trabalho “não convencional” como efetivamente o padrão do trabalho da classe trabalhadora antes das plataformas. Essa é uma experiência compartilhada com a maior parte do mundo no chamado Sul Global (Grohmann; Qiu, 2020). De forma diferente, o Reino Unido apresenta especificidades em seu mercado de trabalho, como a consolidação de um Estado de bem-estar (Huws, 2020). O perfil dos entregadores nos dois países é diferente e isso envolve a migração.
A migração desempenha papel distinto no trabalho de entregadores em ambos os países. Enquanto no Reino Unido esse é um aspecto central (van Doorn; Ferrari; Graham, 2020), no Brasil, a migração entre países não é uma variável importante da mesma forma para entender o trabalho por plataformas. Isso não significa que as geografias não importam para o trabalho por plataformas no Brasil, mas acontece de forma diferente. O país tem um histórico importante de migração interna e formação de zonas periféricas nas grandes cidades (Caldeira, 2000). Vale destacar também que o fluxo migratório para Brasil vindo de outros países latinos e africanos lusófonos tem aumentado no último período. Acreditamos, informado pelas tendências apontadas por nossa pesquisa, que parte dessa massa de trabalhadores pode se incorporar no trabalho de entrega por plataformas, mas ainda é cedo para saber o quanto isso vai impactar essa indústria. Pesquisas mostram que os entregadores no Brasil são tipicamente negros, jovens e nascidos nesses bairros periféricos (Abílio et al., 2020). Esses trabalhadores viajam dezenas de quilômetros todos os dias em suas motos ou bicicletas para o centro das cidades, onde a demanda por pedidos é maior. Lage e Rodrigues (2021, p. 10) afirmam que a experiência dos “homens negros de entrega de aplicativo tem sido marcada por movimentos de precariedade e resistência. O medo, a raiva e a ansiedade que já afetam a população negra podem aumentar substancialmente com o estresse da entrega”.
Além disso, pesquisas sobre entregadores no Brasil (Abílio, 2020; Abílio; Grohmann; Weiss, 2021; Abílio et al., 2020; Howson et al., 2020) mostram que eles ganham menos de US$ 200 por mês, muito menos do que no Reino Unido, onde os entregadores brasileiros podem ganhar essa quantia por dia. Ao contrário do Reino Unido, os trabalhadores são penalizados pelas plataformas se ficarem fora delas por semanas ou meses. Quando eles retornam, o número de entregas é menor (Abílio, 2020). Isso revela uma maneira pela qual o gerenciamento algorítmico é usado de forma diferente no Norte e no Sul Global. Assim, é necessário examinar geografias, migração e raça para entender a vida dos entregadores no Brasil, no Reino Unido e, também, em nível transnacional.
Por sua vez, Tassinari e Maccarrone (2019), Cant (2019) e Woodcock (2021) destacam a importância dos brasileiros no setor de entregas no Reino Unido. Eles ressaltam o papel central dos brasileiros na organização de mobilizações e protestos, inclusive por meio de tecnologias de comunicação, como o WhatsApp. Por exemplo, Cant (2019, p. 87, tradução nossa) reconhece que “todas as ações coletivas empreendidas por entregadores da Deliveroo têm vingado ou fracassado, a depender de se os trabalhadores migrantes as apoiaram ou não, e a maioria das greves têm sido catalisadas e lideradas por eles”. Contudo, embora o autor reconheça o papel central dos migrantes brasileiros nas diferentes ondas de greves, não há nenhuma menção sobre como os migrantes apoiaram essas ações ou porque não a apoiaram.
Cant (2019) cita migrantes brasileiros 11 vezes em seu livro, principalmente seu papel na organização e tática grevista. Ele também ficou surpreso ao notar que muitos trabalhadores apoiam Jair Bolsonaro. No entanto isso vai ao encontro de outros estudos sobre a composição política dos trabalhadores brasileiros por plataformas (Grohmann; Alves, 2020). Cant (2019, p. 100) também aponta que é impossível realizar uma pesquisa que afirme: “há X trabalhadores de X países” no setor de entregas do Reino Unido. O que é central, então, é compreender as diferentes experiências de trabalho dos migrantes brasileiros como entregadores.
Este artigo é baseado no longo trabalho etnográfico de dois de seus autores e em 13 entrevistas em profundidade com entregadores brasileiros que trabalham no Reino Unido para plataformas como Deliveroo, UberEats e/ ou Stuart. Um dos autores trabalhou por dois anos como militante sindical do IWGB Union, como responsável pela organização de entregadores brasileiros, e o outro é membro do comitê executivo do mesmo sindicato e acompanhou desde o início a formação do setor de entregadores. 2 (O IWGB Union (Independent Union of Workers of Great Britain) é um sindicato independente do Trade Union Confederation (TUC) e é caracterizado por organizar trabalhadores migrantes e precários, em especial latino-americanos. É um sindicato com uma longa tradição de ação direta, organização nos locais de trabalho e uma estrutura interna de democracia de base (Woodcock, 2016; Però, 2019).) As entrevistas foram feitas numa amostragem não representativa, por meio do método de bola-de-neve com entregadores que eram ou não membros do sindicato, com ou sem documentação para permanecer e trabalhar no país, e sendo 10 deles homens. Todos os entrevistados tinham entre 25 e 55 anos de idade. As descobertas também são extraídas de observações exploratórias em grupos de mídias sociais e dois encontros entre entregadores e organizadores brasileiros que trabalham no Reino Unido e no Brasil. As entrevistas para este artigo foram conduzidas entre outubro de 2020 e janeiro de 2021.
Análise
Ao longo das entrevistas, ficou claro que as experiências e os processos de migração moldam a forma como muitos entregadores brasileiros se envolvem com o trabalho, bem como suas respostas a ele. Ao mesmo tempo, as plataformas também moldaram e afetaram as formas como o fluxo de migrações se desenrola na prática, reconstruindo os mecanismos de migração por plataformas. Assim, fica claro que a composição de classes e a migração de plataforma estão interligadas.
Essas dinâmicas estão muitas vezes além da lente da análise do processo de trabalho ou de muitos dos estudos existentes sobre o trabalho por plataformas. Com base na perspectiva de composição de classes discutida anteriormente, fica claro que questões da “composição social”, incluindo onde os trabalhadores vivem e em que tipo de moradia, a divisão de gênero do trabalho, padrões de migração, racismo, comunidade e infraestruturas são importantes para desenvolver uma compreensão sobre esse trabalho. Chamar atenção para o papel da composição social também significa entendê-la em relação à composição técnica do trabalho, ao invés de substituir a análise do trabalho por fatores externos ao processo de trabalho. Isso também significa compreender a heterogeneidade das experiências de trabalho dos entregadores e as complexidades de sua organização política.
Experiências de trabalho e composição técnica
Conforme argumentado por van Doorn, Ferrari e Graham (2020), o trabalho migrante desempenha papel infraestrutural nas plataformas de entrega. A força de trabalho migrante é a grande maioria de quem trabalha com entrega de alimentos na área de Londres. As empresas estão plenamente conscientes disso e aproveitam a situação precária dos trabalhadores para pressionar os pagamentos e se apoiar no status de trabalhador autônomo (self- employed). Sabe-se que os migrantes, particularmente aqueles em situação irregular, são mais propensos a aceitar condições precárias, empregos mal remunerados e jornadas exaustivas, e também menos propensos a se envolver em ações coletivas ou judiciais. Esse nível extra de exploração é crucial para garantir altos níveis de lucro dessas empresas. No entanto a migração também molda a economia de plataformas em nível inferior no próprio processo de trabalho. Assim, isso impacta a composição técnica desses trabalhadores.
Na maior parte da economia de plataforma, espera-se que os trabalhadores entendam por si só como o trabalho é organizado e lidem com quaisquer problemas (Woodcock, 2021). Depois que um trabalhador cria sua conta e faz login, espera-se que ele realize o trabalho. Os entregadores têm pouco ou nenhum suporte da plataforma. A pesquisa etnográfica clássica de Burawoy (1979) mostrou que o trabalho é, muitas vezes, realizado por um “jogo de viração” (making out game), no qual os trabalhadores empregam uma série de táticas informais desenvolvidas e hacks para jogar contra seus supervisores e aproveitar as falhas no processo de trabalho para superar as expectativas estabelecidas. Na economia de plataformas, onde o processo de trabalho é muito mais flexível do que no trabalho industrial, o desempenho real do trabalho é ainda mais permeado por essas táticas, hacks e fissuras nos algoritmos (Ferrari; Graham, 2021). Nesse cenário, os grupos de entregadores brasileiros que estão conectados em rede nas mídias sociais e nas diversas infraestruturas da comunidade brasileira em Londres (como lojas, oficinas de moto, pensionatos etc.) tornam-se um ponto-chave para iniciar os novatos no trabalho, apoiar os atuais entregadores com alertas, dicas e reclamações, e desenvolver novos hacks no processo de trabalho.
Na fábrica industrial, a meta de unidades a serem produzidas era definida pelos gestores para atender às demandas das empresas. Na entrega por plataformas, as metas diárias ou semanais são estabelecidas pelos próprios trabalhadores, diretamente condicionadas às suas necessidades de sobrevivência e reprodução de sua força de trabalho. Nas formas anteriores de trabalho, as informações e hacks sobre as formas de execução do trabalho na prática circulavam no chão de fábrica, nos vestiários ou nos refeitórios. Agora, isso é facilitado por meio de grupos de WhatsApp e dos espaços da cidade, como áreas de espera ou coleta de pedidos e oficinas de motos. No Reino Unido, esses grupos de WhatsApp são estruturados em várias camadas, atravessados por nacionalidades, territórios e grupos de afinidade. Normalmente, existem grupos mais amplos de entregadores brasileiros em Londres, então grupos menores de entregadores brasileiros na área local. O mesmo ocorre com outras nacionalidades minoritárias, como bengaleses e argelinos. Também pode haver grupos locais com muitas nacionalidades, mas as barreiras linguísticas excluem a maioria dos entregadores internacionais não fluentes em inglês. Além disso, muitos entregadores têm grupos menores com outros trabalhadores brasileiros com os quais desenvolveram relações mais próximas de amizade e afinidade. Nesses grupos, há táticas e hacks mais detalhados, além de discussões pessoais e até reclamações sobre outros entregadores.
Vale ressaltar também que, embora esses grupos compartilhem muitas táticas para facilitar sua entrada nesse negócio e aumentar seus ganhos, qualquer prática que prejudique outros entregadores brasileiros é fortemente condenada pela comunidade. Esses grupos também denunciam pessoas que tentam se aproveitar ou praticam fraudes e golpes. Embora existam poderes limitados de coerção dentro da comunidade brasileira, uma vez que não há hierarquias comunitárias, essas redes impedem uma “corrida ao fundo do poço” não regulamentada. Por exemplo, vários foram os entrevistados que chamaram de “vagabundos” os entregadores que utilizam fake GPS, ferramenta instalada no celular que permite emular localizações simultâneas para pegar mais entregas. Também eram comuns os casos de linchamento ou expulsão de certas áreas da cidade de entregadores acusados de roubar motos ou equipamentos de outros entregadores. Esse é um esforço consciente de muitos entregadores brasileiros para compensar a negligência do governo e das empresas em protegê- -los e garantir condições mínimas de trabalho e vida. Essas redes de brasileiros não apenas moldam o processo de trabalho, mas também a reprodução dessa força de trabalho. Em algumas áreas de Londres com alta concentração de entregadores, é comum ter um destes (ou a esposa de um deles) que vai aos bolsões de espera vender marmitas ou salgados brasileiros, ou terem restaurantes brasileiros locais que fazem desconto para os entregadores. Isso reduz o tempo de deslocamento desses trabalhadores e permite um maior número de entregas no dia. Em particular, esses grupos também divulgam informações importantes sobre como gerenciar a vida além do trabalho no Reino Unido, incluindo produtos e serviços de marketing de membros dessas comunidades – incluindo acesso à TV aberta brasileira, a jogos de campeonatos de futebol do Brasil etc. Muitas pessoas fazem amizades e conexões com outros brasileiros, construindo um sentimento de pertencimento, por meio dos grupos de entregadores e encontrando grupos de amigos nas ruas e nos pontos de espera.
Na outra direção, a economia de plataformas também está moldando os fluxos migratórios de forma mais ampla. Essa nova indústria se tornou, ao mesmo tempo, uma degradação das condições de trabalho e uma oportunidade muito necessária para os trabalhadores migrantes em um mercado de trabalho rigoroso e discriminatório que nunca se recuperou totalmente da crise econômica de 2008 (van Doorn; Ferrari; Graham, 2020). Todos os brasileiros que entrevistamos, que estavam no Reino Unido quando essas empresas surgiram, deixaram seus empregos nos serviços de limpeza, hotelaria ou restaurante para se tornarem entregadores porque os ganhos eram significativamente maiores. Um deles nos contou que acumulou em “três anos como entregador mais que o dobro do que fez em 13 anos em outros serviços”. Outros reportaram que viram nessa indústria um meio fácil de migrar e conseguir um trabalho imediato ao chegar no Reino Unido, mesmo sem documentação. A vantagem de decidir quando trabalhar ou não é particularmente conveniente para migrantes cujo trabalho reprodutivo está cheio de imprevistos a resolver e atraente para pessoas que vivem em um país estrangeiro que sempre desejaram visitar e desfrutar. O processo relativamente simples para entrar nas plataformas e os mecanismos apoiados pela comunidade brasileira para que trabalhadores sem documentos tenham acesso às plataformas criaram um fluxo fácil para o mercado de trabalho do Reino Unido. Seja você migrante com visto de turista vindo direto do Brasil para o Reino Unido ou um brasileiro com passaporte europeu, essas redes e oportunidades de trabalho criaram uma infraestrutura para a migração. Embora alguns mediadores estivessem mais presentes no passado, hoje em dia, parece que essas mídias sociais ou conexões pessoais com conhecidos já no Reino Unido estão ultrapassando o cenário anterior. Além disso, o Brasil é o segundo país com maior uso de motocicletas no Ocidente Global, portanto a maioria já possui habilitação para dirigir motocicleta.3 (Disponível em: https://assets.pewresearch.org/wp-content/uploads/sites/2/2015/04/Transportation-Topline.pdf. Acesso em: 5 set. 2022.) Em consonância com literatura anterior sobre trabalhadores por plataformas do Sul Global (Soriano; Cabanes, 2019; Wood et al., 2019), muitos não se entendem necessariamente como precários. Um dos entrevistados afirmou que “é melhor ser entregador do que faxineiro” e outro que “hoje em dia é difícil encontrar alguém que queira trabalhar como faxineiro ou em restaurantes”.
No entanto o trabalho envolve cada vez mais uma pressão para reduzir os pagamentos por entregas e o aumento de condições precárias, como muitas entregas ao mesmo tempo, e instabilidade, com bloqueios injustos. Isso está levando muitos brasileiros a questionar se ainda vale a pena os riscos e a exaustão. Este é particularmente o caso dos migrantes em situação regular e daqueles que trabalham nesse setor há muito tempo e veem claramente a deterioração das condições de trabalho e remunerações. Eles agora disseram que estão começando a planejar encontrar outro emprego permanente – situação semelhante a quando a economia de plataformas surgiu. A quantidade 3 Disponível em: https://assets.pewresearch.org/wp-content/ uploads/sites/2/2015/04/Transportation-Topline.pdf. Acesso em: 5 set. 2022. significativa de dinheiro gerada por essas entregas vem ao custo de trabalhar sete dias por semana por mais de 12 horas por dia, padrão descrito pela grande maioria dos entregadores entrevistados.
Há diferentes visões sobre a comparação entre trabalhar no Brasil ou no Reino Unido como entregador. Um dos trabalhadores entrevistados afirmou que, diferentemente do Brasil, no Reino Unido ele pode manter o aplicativo desligado por meses e não ser punido pela plataforma. Isso significa que o gerenciamento algorítmico não funciona da mesma forma nos dois países. Como explicitado anteriormente, outra vantagem é o pagamento. Muitos entregadores comentaram que, em alguns casos, o pagamento semanal no Reino Unido é maior do que o pagamento mensal no Brasil. No entanto, há exceções, como explicou um trabalhador: “aqui é pior que o Brasil. Antes da pandemia, eu era superexplorado. Não sei como não tive um infarto”. Embora a maioria dos trabalhadores tenha optado por vir trabalhar no Reino Unido por causa dos benefícios relativos, a sensação de satisfação não é homogênea.
Os trabalhadores também relatam experiências comuns de ser um trabalhador migrante em Londres. Por exemplo: “uma vez, o restaurante me perguntou por que meu nome era de mulher”, afirmou um entrevistado que é homem cisgênero. Os trabalhadores alegam que os restaurantes os veem com preconceito, discriminação, ameaças e assédio. Eles disseram que é ainda mais difícil ir ao banheiro dos restaurantes em relação aos entregadores que não são migrantes. A discriminação também acontece quanto ao idioma, pois o sotaque é um indicador de migração (Aneesh, 2015). Segundo um entregador brasileiro, “eles veem que não tenho inglês fluente, que tenho um sotaque forte”. Outro trabalhador disse: “eu não falo inglês, nem minha esposa. Mas vou lutar por isso”.
No contexto da pandemia, onde os entregadores estavam mais expostos à Covid-19, vários brasileiros pegaram o vírus. Um dos trabalhadores entrevistados decidiu voltar ao Brasil depois disso. Ele sentia falta da família e agora trabalha como entregador em seu próprio país. Esse entregador considera que não ser migrante lhe dá mais segurança no dia a dia do trabalho, mas sofre mais com o gerenciamento algorítmico e as pressões financeiras no Brasil. Um dos impactos da crise da Covid-19 sobre esses entregadores, além do aumento do estresse e vulnerabilidade que afetou a todos, foi um sentimento crescente de importância e autorreconhecimento. Isso, no entanto, colidiu com o sentimento de injustiça e desprezo dos crescentes casos de demissões injustas de trabalhadores de longo prazo. Esse é um dos maiores medos dos entregadores. Frequentemente, escutávamos palavras como “as pessoas podem pensar que não, mas somos cruciais para este país, a Covid-19 nos mostrou isso”, ou “fomos um dos únicos a trabalhar todos os dias nas ruas durante esta pandemia enquanto todos estavam em casa seguros. Sem nós, este país teria parado”. Isso demonstra como o sentimento de ressentimento contra as plataformas e a organização mais geral da economia foi aumentando com a pandemia.
Brasileiros como comunidade heterogênea: composição social
Por si só, ser migrante molda a composição social dos trabalhadores. Suas trajetórias de vida, experiências e sentidos atribuídos nas atividades cotidianas e perspectiva de futuro são muito diferentes das de um trabalhador não migrante. No entanto, diferentemente de como a maioria da literatura se refere a eles, os trabalhadores migrantes não são uma categoria homogênea, nem mesmo os brasileiros entre eles. A composição social dos entregadores brasileiros no Reino Unido não é apenas diferente dos brasileiros no Brasil, mas também entre si. Os brasileiros, assim como estadunidenses ou trabalhadores de qualquer outra nacionalidade, têm origens culturais, valores pessoais e conjuntos de crenças muito diferentes.
As diferentes origens e trajetórias desses entregadores informam as formas como percebem e se envolvem com o trabalho de entrega e, como consequência, também os planos futuros que têm para si mesmos. É comum ver pessoas da classe trabalhadora que economizaram dinheiro por um longo período de tempo para migrar para o Reino Unido. Isso geralmente é facilitado pelo contato com outra pessoa que já migrou. Há também migrantes da classe média que já têm cidadania europeia – o que é bastante comum no Brasil devido às muitas ondas de migrantes europeus para o país no início do século XX – e lutavam para encontrar boas oportunidades econômicas no Brasil ou queriam ter a experiência de morar em outro país.4 ( Este último grupo foi especialmente afetado pelo Brexit. Muitos entregadores nos disseram que agora tudo vai ficar mais complicado para os brasileiros migrarem para o Reino Unido. Alguns deles, que tinham passaportes europeus, estavam em outros países e correram para o Reino Unido antes do Brexit para obter o pre-settlement scheme, que permitiu que europeus pudessem entrar na rota do pedido da cidadania britânica. É muito provável que essa rota específica de migração diminua no próximo período. ) Uma intersecção entre esses dois tipos ideais também é comum. No entanto o processo de migração não é um empreendimento barato. O tipo de pessoa que vem para o Reino Unido não é o que costuma trabalhar com entrega no Brasil e tem que lutar para sobreviver até a próxima semana.
Alguns entrevistados explicaram que a maioria dos entregadores brasileiros vem do estado de Goiás, na região central do Brasil. Um trabalhador disse que, nos últimos anos, tem havido um movimento para que as esposas dos entregadores também fossem para o Reino Unido para serem entregadoras. Eles destacam a busca por melhores condições econômicas e o desejo de morar em um país de “primeiro mundo” como alguns dos motivos para se mudar para o Reino Unido. Um dos entrevistados disse: “a maioria das pessoas vem aqui porque tem dificuldades financeiras. E por mais ricos que fossem, de classe média, eles vieram por causa disso”. As observações desse trabalhador em relação aos “ricos” e à “classe média” são algumas evidências de que os entregadores brasileiros no Reino Unido se sentem pertencentes a diferentes frações de classe (Wright, 1997) em relação aos trabalhadores no Brasil e entre eles mesmos. Segundo um dos entrevistados, “o entregador na Inglaterra se sente superior aos colegas do Brasil. Tem um meme que circulou no nosso grupo de WhatsApp com um entregador no Brasil como um cara fraco, e no Reino Unido como se fosse Beyoncé, poderosa!”. Isso se deve à circulação de sentidos e imaginários em torno do trabalho manual (Sohn-Rethel, 1978) em um país periférico e colonizado (Grohmann; Qiu, 2020). Esses imaginários coloniais (Atanasoski; Vora, 2019; Soriano; Cabanes, 2019) reforçam que trabalhar no Norte Global significa sucesso na vida. Esses aspectos da composição social também afetam a composição política da classe trabalhadora.
Essa pluralidade de composição social não vem sem o custo de muitos conflitos dentro da comunidade brasileira. Enquanto alguns querem construir uma vida no Reino Unido, outros querem apenas aproveitar ao máximo essa experiência internacional antes de retornarem (ou eventualmente serem pegos pela imigração). Muitos deles são trabalhadores documentados, outros estão tentando ser, e também há trabalhadores que estão menos preocupados com o status regular. Embora a grande maioria trabalhe em tempo integral como entregadores, uma minoria também tem outros tipos de empregos e realizam trabalhos por plataformas por um dinheiro extra. Há também distinções entre valores pessoais e crenças dentro da comunidade brasileira. Uma frase comum que surgiu em muitas das entrevistas foi a afirmação de que o “jeitinho brasileiro” cria uma série de conflitos por parte dos trabalhadores, por exemplo, entre os “honestos” e “batalhadores” versus aqueles frequentemente chamados de “desonestos” e “vagabundos”. Esse tipo de oposição simbólica é muito comum nos diálogos nessa comunidade. Por exemplo, um trabalhador afirmou que o “brasileiro é mais ou menos unido. Eu sou do grupo honesto. Mas nem todos são”. A relação com outras nacionalidades também não é a mesma. Enquanto alguns deles organizaram greves e boicotes junto a outros grupos nacionais, uma das trabalhadoras nos explicou que se sente envergonhada quando brasileiros zombam de outros migrantes em grupos de WhatsApp. As queixas sobre a falta de união entre os brasileiros, o ressentimento com “pessoas individualistas” e o reforço da necessidade de construir uma comunidade mais solidária é um sentimento comum, mas que parece estar mais presente em entregadores mais experientes e que estão engajados nesse setor há mais tempo.
Os grupos de WhatsApp têm papel central no Brasil e para os brasileiros no Reino Unido (Evangelista; Bruno 2019; Garcia; Vivacqua, 2021), tanto em termos de composição social quanto política. Isso acontece tanto a partir da sociabilidade já existente nas ruas quanto nas relações on-line. Em grupos, os trabalhadores trocam ideias sobre trabalho, memes e piadas sobre o dia a dia. No entanto, como detalhou uma entregadora, há discriminação de gênero e toxicidade nesses grupos. Isso pode levar à marginalização de alguns trabalhadores dentro de um fórum que desempenha papel fundamental na facilitação da identidade e organização coletiva. Essas ambivalências também revelam conflitos e competitividade, bem como solidariedades contraditórias entre trabalhadores (Soriano; Cabanes, 2020).
Organização e composição política
A heterogeneidade dos entregadores brasileiros no Reino Unido também se reflete em sua composição política. As disputas e contradições em torno das frações de classe e diferentes modos de solidariedade, possibilitadas pelas plataformas de mídias sociais, também são desafios para a organização e a recomposição política de classe. Os grupos de WhatsApp ajudam a desenvolver solidariedades emergentes, mas este é apenas o primeiro passo para a organização (Schradie, 2019), considerando as contradições e políticas das plataformas de mídias sociais (Davis, 2020; Lazar; Ribak; Davidson, 2020). Há tantos trabalhadores que apoiam Jair Bolsonaro e Donald Trump – e a política de extrema-direita de forma mais ampla (Grohmann; Alves, 2020) – quanto há aqueles que os odeiam. Não sem razão, a maioria dos grupos de WhatsApp tem regras rígidas contra qualquer tipo de propaganda política associada a partidos políticos ou a políticos. Por meio de nosso envolvimento etnográfico com esses trabalhadores, é interessante notar que muitos dos entregadores brasileiros mais proativos e radicais, inclusive sendo membros do sindicato, eram fortes apoiadores de Bolsonaro. Nesses casos, era evidente a conexão de um sentimento “antissistema” que gerava, ao mesmo tempo, o apoio ao político de extrema- -direita e a revolta contra os aplicativos.
Muitos dos trabalhadores entrevistados já haviam participado de greves ou boicotes no Reino Unido, enquanto outros não. Contudo todos eles disseram que participariam se todos os outros o fizessem. Eles acreditavam que era importante fazer isso diante das dificuldades que enfrentavam nas ruas para ganhar uma quantia razoável de dinheiro. As experiências organizativas dos entregadores brasileiros também são informadas por suas experiências anteriores de trabalho no Brasil. O fato de serem migrantes impede que muitos conheçam o direito à organização dos trabalhadores e de filiação a um sindicato, em especial entre aqueles que não estão em situação regular. Houve opiniões negativas sobre os sindicatos brasileiros, medo de ser perseguido por participar de uma greve ou a impressão de que os sindicatos não são para migrantes não documentados.
Como argumentado anteriormente, a composição social plural dos entregadores brasileiros reflete em sua composição política. Em geral, os trabalhadores que estão em situação regular, os que querem estabelecer uma vida no país, os que já moram no Reino Unido e, especialmente, trabalham para empresas de plataformas de entrega há algum tempo são os mais propensos a se envolver de forma proativa em ações coletivas. No entanto todos os nossos entrevistados afirmaram que, quando uma ação é convocada em determinada área, a maioria tende a respeitar a decisão, mesmo os trabalhadores em situação irregular ou aqueles que não gostam de tirar folga para ganhar dinheiro. As coerções coletivas e o constrangimento moral de ir contra o resto de seus pares são ferramentas poderosas para incentivar a participação. Em áreas específicas onde os diferentes grupos nacionais que têm uma forte presença decidem agir em conjunto, essa aliança é particularmente potente. Por se conhecerem, esses grupos nacionais funcionam como um controle contra os “fura-greves”. Essas conexões são comuns por meio das relações formadas durante o trabalho, mas não são desenvolvidas por meio de líderes ou representantes formais, pois esses grupos são heterogêneos. Geralmente, isso se dá na base de relação pessoais em que uma pessoa de uma nacionalidade tem relações de amizade ou coleguismo com alguém da outra nacionalidade. Nessas situações, os grupos em mídias sociais e piquetes em frente aos maiores restaurantes são importantes para reforçar esses constrangimentos e fazer a greve acontecer. Ao mesmo tempo, os grupos de WhatsApp são a base comum dessas redes para construir a ação coletiva. Essas ações também constroem e fortalecem novos grupos e redes para organizar as greves. É por meio desses processos que a identidade dos entregadores é concretamente formada e expressa (Woodcock, 2021).
A condição de migrante implica estar mais vulnerável a casos de abuso por parte de restaurantes, clientes e policiais. Frequentemente, essas são fagulhas para greves e protestos locais. Ao longo do nosso engajamento etnográfico, vários foram os casos testemunhados – como a onda de protestos em Bristol devido à negligência policial com a violência sofrida pelos entregadores brasileiros, o assédio de policiais no bairro de Dalston, que gerou uma onda de paralisações e protestos na subprefeitura local, e diversos casos de boicotes a restaurantes devido a casos de xenofobia e racismo. Isso ajuda a entender por quais motivos os entregadores migrantes tem sido geralmente os iniciadores dos processos de lutas e resistências registradas no Reino Unido, como apontado por outras pesquisas (Cant, 2019). A falta de conhecimento ou acesso de caminhos institucionais ou judiciais para solução de problemas com as plataformas também faz com que esses trabalhadores recorram aos atos de ação direta como o único caminho para chamar atenção dessas empresas e do poder público. Ao mesmo tempo, a densa infraestrutura de comunicação descrita anteriormente como condição necessária para o trabalho desse grupo de trabalhadores facilita sua mobilização coletiva.
Após as grandes greves de entregadores no Brasil em 2020 (os “Breques dos Apps”), facilitamos as relações on-line para começar a compartilhar experiências. Essa foi uma oportunidade para ajudar na circulação das lutas dos trabalhadores – revelando tanto o potencial quanto os limites da composição política de classe. Embora essas greves tenham dado um motivo comum de encontro, a comunicação entre trabalhadores que estão em diferentes países revela especificidades, articulações e semelhanças entre os entregadores. Compartilhar táticas e estratégias em torno da organização coletiva é uma forma de fortalecer as lutas dos trabalhadores. Entretanto isso nem sempre acontece de forma espontânea ou rápida, porque existem contradições em torno da composição política, incluindo diferenças de organização em diferentes países. Acreditamos que troca de experiências entre os trabalhadores dos dois países pode ser um ponto de partida para uma circulação mais intensa das lutas de trabalhadores.
CONCLUSÕES
Há diferenças importantes entre os entregadores brasileiros no Brasil e no Reino Unido, embora a organização do processo de trabalho tenha muitos recursos compartilhados, incluindo o uso do aplicativo para celular, gerenciamento algorítmico, contratos precários e os riscos do trabalho nas ruas. Contudo as diferenças no contexto nacional e entre as posições de cada país no capitalismo global continuam importantes. Como Woodcock e Graham (2019) argumentaram, além da tecnologia, a economia política e a dinâmica social do contexto nacional afetam o surgimento da economia de plataformas de maneiras distintas. Como buscamos demonstrar, a migração desempenha um papel importante na composição da força de trabalho, tanto nesses estudos de caso quanto em toda a economia de plataformas.
As plataformas claramente se beneficiam da insegurança jurídica e das situações precárias dos trabalhadores migrantes. Este não é um novo benefício que os empregadores têm procurado capitalizar e está presente ao longo da história do trabalho capitalista. O que é diferente com a exploração contemporânea é a escala e a velocidade com que o trabalho migrante foi atraído para o trabalho por aplicativos. Em parte, isso pode ser explicado considerando a dinâmica do que Collins (2020) chamou de “migração por plataformas”. Formas de trabalho por plataformas como o de entrega de alimentos foram integradas ao processo de migração por plataformas, tornando-se uma maneira relativamente acessível para os migrantes ganharem dinheiro ao chegar a uma nova cidade/ região ou país. Embora as plataformas tenham se beneficiado dessas dinâmicas, principalmente ao fornecer acesso a um grande grupo de trabalhadores em potencial, também foram produzidas dinâmicas que estruturam a capacidade dos trabalhadores de responder e reagir. Esse movimento duplo, em que as plataformas de entrega se apropriam dos fluxos migratórios e afetam a composição técnica desses trabalhadores, ao mesmo tempo em que a situação de migrante destes altera as características do processo laboral, suas condições de vida e formas de resistência, é central na constituição dessa economia de plataformas.
Historicamente, a migração afetou a circulação das lutas dos trabalhadores. Por meio do processo de deslocamento dos trabalhadores de um lugar para outro, podem ser desenvolvidas conexões que compartilham histórias e experiências de lutas. Estes viajam em ambas as direções e podem facilitar o surgimento de novas formas de solidariedade e ação. Os trabalhadores do transporte também têm desempenhado papel importante na circulação das lutas, tendo os trabalhadores dos portos, do transporte marítimo, dos comboios etc. sido determinantes na difusão do movimento operário, algo efetivamente mobilizado pelos pelo sindicato Industrial Workers of the World (Cole et al., 2017), por exemplo. Assim, para os trabalhadores migrantes envolvidos no transporte de alimentos, essa dinâmica também pode ser encontrada no Brasil e no Reino Unido. Por um lado, essa circulação transnacional de trabalhadores gera um tipo de segregação entre as diferentes nacionalidades nessa indústria, mas esses grupos nacionais também são base importante para a coletividade em um processo de trabalho tão fragmentado e individualizado. Quando essa coletividade se transforma em ação coletiva, esses grupos nacionais muitas vezes se reúnem para desenvolver experiências coletivas que são compartilhadas tanto no contexto nacional quanto transnacional.
As evidências das entrevistas e das pesquisas etnográficas com entregadores brasileiros em Londres também chamam atenção para uma importante característica da comunidade brasileira de trabalhadores. Existe a tentação de estratificar os trabalhadores de plataforma em diferentes grupos, muitas vezes ao longo de linhas de raça, etnia ou migração. Da mesma forma, argumentamos que também se corre o risco de homogeneizar as experiências dos trabalhadores dentro desses grupos. Como demonstramos com as diferenças de experiências entre a primeira onda de migrantes brasileiros para trabalhar com delivery e as ondas mais recentes, não há uma experiência singular de entregadores brasileiros. Existem, no entanto, importantes experiências compartilhadas relacionadas ao processo de migração que afetam de modo semelhante à composição de classe desses trabalhadores. A força da análise da composição de classe é justamente poder extrair a forma como a dinâmica da composição social interage com a composição técnica para moldar a composição política dos trabalhadores. Já são diversas as pesquisas que demonstram que as dinâmicas no processo laboral no trabalho por plataformas geram conflitos que muitas vezes desencadeiam greves selvagens e outras formas de protesto. A composição técnica é o ponto de partida. No entanto a composição social dos entregadores, tanto no Brasil como no Reino Unido, tem efeito importante sobre essas dinâmicas de luta. Como demonstrado neste artigo, ter em conta o papel da migração pode fortalecer uma compreensão marxista dessas lutas, integrando- -as numa compreensão mais ampla da formação de classes que está emergindo no trabalho por plataformas.
Este artigo pretende, portanto, ser mais uma contribuição para a agenda de pesquisa que olha por trás da plataforma e dos recursos do trabalho como gerenciamento algorítmico para chamar atenção para como os trabalhadores estão respondendo a isso. Ao mesmo tempo em que demonstramos a importância de considerar dimensões do trabalho além da tecnologia, também abrimos questões que estão além do escopo desta discussão. Em particular, argumentamos que há uma necessidade premente de compreender mais profundamente as perspectivas ideológicas dos entregadores brasileiros no Reino Unido e intensificar as articulações entre os organizadores no Brasil e no Reino Unido. Defendemos que a pesquisa orientada para o trabalhador deve envolver práticas não extrativistas, buscando desenvolver maneiras pelas quais os pesquisadores possam apoiar os trabalhadores em suas lutas.
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